quarta-feira, 9 de outubro de 2013

APESAR DAS RUÍNAS E DA MORTE..



Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.


Sophia de Mello Breyner Andresen
(in Poesia, 1944)


sábado, 5 de outubro de 2013

Navio Naufragado



Vinha de um mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso. 
 
É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.
 
Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.
 
E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves dos cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos de videntes.

 
Sophia de Mello Breyner
in "Dia do Mar"
 

Quem como eu


 
Quem como eu em silêncio tece
Bailados, jardins e harmonias?
Quem como eu se perde e se dispersa
Nas coisas e nos dias?
 
Sophia de Mello Andresen 
in Dia do Mar
 

Eis Que Morreste


 
Eis que morreste. Mortalmente triste
Divaga a flor da aurora entre os teus dedos
E o teu rosto ficou entre as estátuas
Velado até que o novo dia nasça.
 
Se nenhum amor pode ser perdido
Tu renascerás -- mas quando?
Pode ser que primeiro o tempo gaste
A frágil substância do meu sono.

 
Sophia de Mello Breyner Andresen
Coral


Praia


 
Os pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem.
 
Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes.
 
Pássaros selvagens de repente,
Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.
 
As ondas marram quebrando contra a luz
A sua fronte ornada de colunas.
 
E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro
Baloiça nos pinheiros.

 
Sophia de Mello Breyner Andresen
Coral
 

Biografia


 
Tive amigos que morriam, outros que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento.
 
Sophia de Mello Breyner Andresen
Mar Novo
 

Noite




Sozinha estou entre paredes brancas
Pela janela azul entrou a noite
Com seu rosto altíssimo de estrelas
 
 
Sophia de Mello Andresen
in - Mar Novo
 

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

OS DIAS DE VERÃO



Os dias de verão vastos como um reino
Cintilantes de areia e maré lisa
Os quartos apuram seu fresco de penumbra
Irmão do lírio e da concha é nosso corpo

Tempo é de repouso e festa
O instante é completo como um fruto
Irmão do universo é nosso corpo

O destino torna-se próximo e legível
Enquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astros
Que em sua imóvel mobilidade nos conduzem

Como se em tudo aflorasse eternidade

Justa é a forma do nosso corpo

 Sophia de Mello Breyner Andresen
 In Casario do Ginjal

ESTA GENTE




Esta gente cujo rosto 
Às vezes luminoso 
E outras vezes tosco 

Ora me lembra escravos 
Ora me lembra reis 

Faz renascer meu gosto 
De luta e de combate 
Contra o abutre e a cobra 
O porco e o milhafre 

Pois a gente que tem 
O rosto desenhado 
Por paciência e fome 
É a gente em quem 
Um país ocupado 
Escreve o seu nome 

E em frente desta gente 
Ignorada e pisada 
Como a pedra do chão 
E mais do que a pedra 
Humilhada e calcada 

Meu canto se renova 
E recomeço a busca 
De um país liberto 
De uma vida limpa 
E de um tempo justo 


Sophia de Mello Breyner Andresen,
 in "Geografia"


DE UM AMOR MORTO




De um amor morto fica 
Um pesado tempo quotidiano 
Onde os gestos se esbarram 
Ao longo do ano 

De um amor morto não fica 
Nenhuma memória 
O passado se rende 
O presente o devora 
E os navios do tempo 
Agudos e lentos 
O levam embora 

Pois um amor morto não deixa 
Em nós seu retrato 
De infinita demora 
É apenas um facto 
Que a eternidade ignora 


Sophia de Mello Breyner Andresen,
 in "Geografia"





''As pessoas sensíveis''

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

“Ganharás o pão com o suor do teu rosto” Assim nos foi imposto
E não:
“Com o suor dos outros ganharás o pão”

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoais–lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem


Sophia de Mello Breyner Andresen
Poema extraído do livro "Poemas escolhidos - Sophia de Mello Breyner Andresen", Cia. das Letras - São Paulo, 2004, pág. 151, seleção de Vilma Arêas.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

MAR SONORO


 
Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho.
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.
 
 
Sophia de Mello Breyner Andresen,
in Obra poética I
 
 
 
 
 
 
 

MEIO-DIA


 
Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo,
Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso, solitário e antigo,
Parece bater palmas.
 
 
Sophia de Mello Breyner Andresen,,,,,
in Obra poética I
 


PRAIA




As ondas desenrolam os seus braços
E brancas tombam de bruços.

Sophia de Mello Breyner Andresen,
in Obra poética I