quinta-feira, 26 de setembro de 2013

SENHOR LIBERTAI-NOS



«Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência
No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios
Mas sufocado sonho
E não sabemos bem que coisa são os sonhos
Condutores silenciosos canto surdo
Que um dia subitamente emergem
No grande pátio liso dos desastres»


Sophia de Mello Breyner Andresen
in: Geografia 1967

É POR TI QUE SE ENFEITA ...



É por ti que se enfeita e se consome,
Desgrenhada e florida, a Primavera
É por ti que a noite chama e espera

És tu quem anuncia o poente nas estradas.
E o vento torcendo as árvores desfolhadas
Canta e grita que tu vais chegar.


Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘Dia do mar’ (1974)

O POEMA



O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá

Com o poema no tempo.


Sophia de Mello Andresen
In ‘Livro Sexto’ (1962)

AS TRÊS PARCAS




As três parcas que tecem os errados
Caminhos onde a rir atraiçoamos
O puro tempo onde jamais chegamos
As três parcas conhecem os maus fados.

Por nós elas esperam nos trocados
Caminhos onde cegos nos trocamos
Por alguém que não somos nem amamos
Mas que presos nos leva e dominados.

E nunca mais o doce vento aéreo
Nos levará ao mundo desejado
E nunca mais o rosto do mistério

Será o nosso rosto conquistado
Nem nos darão os deuses o império
Que à nossa espera tinham inventado.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in ‘’Mar Novo - I e II’ (1958)

O TEU ROSTO



Onde os outros puseram a mentira
Ficou o testemunho do teu rosto
Puro e verdadeiro como a morte

Ficou o teu rosto que ninguém conhece
O teu desejo sempre anoitecido
Ficou o ritmo exacto da má sorte
E o jardim proibido.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in ‘’Mar Novo - I e II’ (1958)

SENHOR




Senhor se da tua pura justiça
Nascem os monstros que em minha roda eu vejo
É porque alguém te venceu ou desviou
Em não sei que penumbra os teus caminhos

Foram talvez os anjos revoltados.
Muito tempo antes de eu ter vindo
Já se tinha a tua obra dividido

E em vão eu busco a tua face antiga
És sempre um deus que nunca tem um rosto

Por muito que eu te chame e te persiga.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in ‘’Mar Novo - I e II’ (1958)

PRIMEIRA LIBERDADE



Eu falo da primeira liberdade
Do primeiro dia que era mar e luz
Dança, brisa, ramagens e segredos
E um primeiro amor morto tão cedo.


Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘Tempo Dividido’ (l954)

INTACTA MEMÓRIA



Intacta memória - se eu chamasse
Uma por uma as coisas que adorei
Talvez que a minha vida regressasse
Vencida pelo amor com que a lembrei.

Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘Tempo Dividido’ (l954)

COMO É ESTRANHA A MINHA LIBERDADE



Como é estranha a minha liberdade
As coisas deixam-me passar
Abrem alas de vazio p'ra que eu passe
Como é estranho viver sem alimento
Sem que nada em nós precise ou gaste
Como é estranho não saber


Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘Tempo Dividido’ (l954)

VI



Não te chamo para te conhecer
Conheço tudo à força de não ser

Peço-te que venhas e me dês
Um pouco de ti mesmo onde eu habite


Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘No tempo dividido’ (1954)

V



Não procures verdade no que sabes
Nem destino procures nos teus gestos
Tudo quanto acontece é solitário
Fora de saber fora das leis
Dentro de um ritmo cego inumerável
Onde nunca foi dito nenhum nome


Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘No tempo dividido’ (1954)

EURYDICE



Este é o traço em redor do teu corpo amado e perdido

Para que cercada sejas minha

Este é o canto do amor em que te falo
Para que escutando sejas minha

Este é o poema – engano do teu rosto
No qual busco a abolição da morte.


Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘No tempo dividido’ (1954)

QUADRO



Indeciso ressurge do poente
Aureolado de espanto e de desastres
Em busca do seu corpo dividido

Todas as sombras se erguem das esquinas
E o seguem devagar nas ruas verdes
São como cães no rastro dos seus passos

Aberta a porta o quarto grave surge
E os espaços oscilam nas janelas.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in 'No tempo dividido' (1954)

SONETO DE EURYDICE



Eurydice perdida que no cheiro
E nas vozes do mar procura Orpheu:
Ausência que povoa terra e céu
E cobre de silêncio o mundo inteiro.

Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro.

Porém nem nas marés, nem na miragem
Eu te encontrei. Erguia-se somente
O rosto liso e puro da paisagem.

E devagar tornei-me transparente
Como morte nascida à tua imagem
E no mundo perdida esterilmente.


Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘No tempo dividido’ (1954)

EXCERTO


...

A liberdade que dos deuses eu esperava
Quebrou-se. As rosas que eu colhia,
Transparentes no tempo luminoso,
Morreram com o tempo que as abria.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in “Poemas escolhidos”.

A MEMÓRIA LONGÍNQUA DE UMA PÁTRIA...



A memória longínqua de uma pátria
Eterna mas perdida e não sabemos
Se é passado ou futuro onde a perdemos.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in “Poemas escolhidos”.







CORPO



Corpo serenamente construído
Para uma vida que depois se perde
Em fúria e em desencontro erguidos
Contra a pureza inteira dos teus ombros.

Pudesse eu reter-te no espelho
Ausente e mudo a todo outro convívio
Reter o claro nó dos teus joelhos
Que vão rasgando o vidro dos espelhos.

Pudesse eu reter-te nessas tardes
Que desenhavam a linha dos teus flancos
Rodeados pelo ar agradecido.

Corpo brilhante de nudez intensa
Por sucessivas ondas construído
Em colunas assente como um templo.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in Mar Novo - I e II - (1958)
 
[Tela de Pino Daeni]

NÃO TE OFENDEREI COM POEMAS



Não te ofenderei com poemas 
Param os meus olhos quando penso em ti
Não farei do meu remorso um canto

Com árvores e céus mas sem poemas
Demasiado humano para poder ser dito
O teu mundo era simples e difícil
Quotidiano e límpido


Sophia de Mello Breyner Andresen
in Mar Novo - I e II - (1958)

A ANÉMONA DOS DIAS



Aquele que profanou o mar
E que traiu o arco azul do tempo
Falou da sua vitória

Disse que tinha ultrapassado a lei
Falou da sua liberdade
Falou de si próprio como de um Messias

Porém eu vi no chão suja e calcada
A transparente anêmona dos dias.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in Mar Novo - I e II - (1958)

DATA



Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça.


Sophia de Mello Breyner
- In Livro Sexto

ACORDO QUANDO OS MUROS SÃO O MEDO...


Acordo quando os muros são o medo,
Acordo quando o tempo cai contado,
E no meu quarto entra o arvoredo,
E se desfolha ao longo dos meus membros.

Acordo quando a aurora nas paredes
Desenha nardos brancos e macios,
Acordo quando o sono vos convence
De que sois rios.

Sophia de Mello Breyner Andresen
in 'Poemas escolhidos' 2004

TERROR DE TE AMAR NUM SITIO TÃO FRÁGIL COMO O MUNDO.



Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo.

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in 'Poemas escolhidos' 2004

CONFUNDINDO OS SEUS CABELOS...



Confundindo os seus cabelos com os cabelos do vento,
têm o corpo feliz de ser tão seu e tão denso em plena liberdade.

Lançam os braços pela praia fora e a brancura dos pulsos penetra nas espumas.

Passam aves de asas agudas e a curva dos seus olhos
prolonga o interminável rastro no céu branco.

Com a boca colada ao horizonte aspiram longamente
a virgindade de um mundo que nasceu.

O extremo dos seus dedos toca o cimo de delícia
e vertigem onde o ar acaba e começa.

E aos seus ombros cola-se uma alga, feliz de ser tão verde.

Sophia de Mello Breyner Andresen
in 'Poemas escolhidos' 2004

DIA DO MAR NO AR...


Dia do mar no ar, construído
Com sombras de cavalos e de plumas.

Dia do mar no meu quarto – cubo
Onde os meus gestos sonâmbulos deslizam
Entre o animal e a flor como medusas.

Dia do mar no ar, dia alto
Onde os meus gestos são gaivotas que se perdem
Rolando sobre as ondas, sobre as nuvens.


Sophia de Mello Breyner Andresen
In 'Poemas escolhidos' 2004

AS MINHAS MÃOS MANTÉM AS ESTRELAS



As minhas mãos mantêm as estrelas,
Seguro a minha alma para que se não quebre
A melodia que vai de flor em flor,
Arranco o mar do mar e ponho-o em mim
E o bater do meu coração sustenta o ritmo das coisas.

Sophia de Mello Breyner Andresen
in 'Poemas escolhidos' 2004

DEPOIS DA CINZA MORTA DESTES DIAS...



Depois da cinza morta destes dias,
Quando o vazio branco destas noites
Se gastar, quando a névoa deste instante
Sem forma, sem imagem, sem caminhos,
Se dissolver, cumprindo o seu tormento,
A terra emergirá pura do mar
De lágrimas sem fim onde me invento.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in 'Poemas escolhidos' 2004

PRA MINHA IMPERFEIÇÃO...



Pra minha imperfeição está suspenso
Em cada flor da terra um tédio imenso.

Todo o milagre, toda a maravilha
Torna mais funda a minha solidão.
E todo o esplendor pra mim é vão,
Pois não sou perfeição nem maravilha.

As flores, as manhãs, o vento, o mar
Não podem embalar a minha vida.
Imperfeita não posso comungar
Na perfeição aos deuses oferecida.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in 'Poemas escolhidos' 2004

MAIS



Mais do que tudo, odeio
Tantas noites em flor da Primavera,
Transbordantes de apelos e de espera,
Mas donde nunca nada veio.


Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I

terça-feira, 24 de setembro de 2013

''Dia de Hoje''

Ó dia de hoje, ó dia de horas claras
 florindo nas ondas, cantando nas florestas,
 no teu ar brilham transparentes festas
 e o fantasma das maravilhas raras
visita, uma por uma, as tuas horas
 em que há por vezes súbitas demoras
 plenas como as pausas dum verso.

 Ó dia de hoje, ó dia de horas leves
 bailando na doçura
e na amargura
de serem perfeitas e de serem breves.

 Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 15 de setembro de 2013

CASA



A antiga casa que os ventos rodearam 
Com suas noites de espanto e de prodígio 
Onde os anjos vermelhos batalharam 

A antiga casa de inverno em cujos vidros 
Os ramos nus e negros se cruzaram 
Sob o Íman dum céu lunar e frio 

Permanece presente como um reino 
E atravessa meus sonhos como um rio 


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN 
In Geografia

BARCO



Margens inertes abrem os seus braços 
Um grande barco no silêncio parte. 
Altas gaivotas nos ângulos a pique, 
Recém-nascidas à luz, perfeita a morte. 

Um grande barco parte abandonando 
As colunas de um cais ausente e branco. 
E o seu rosto busca-se emergindo 
Do corpo sem cabeça da cidade. 

Um grande barco desligado parte 
Esculpindo de frente o vento norte. 
Perfeito azul do mar, perfeita a morte 
Formas claras e nítidas de espanto 


 SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN 
In Coral

AS MINHAS MÃOS



As minhas mãos mantêm as estrelas, 
Seguro a minha alma para que se não quebre 
A melodia que vai de flor em flor, 
Arranco o mar do mar e ponho-o em mim 
E o bater do meu coração sustenta o ritmo das coisas.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN 
In Coral, 1950 


segunda-feira, 9 de setembro de 2013

TERROR DE TE AMAR



Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.


Sophia de Mello Breyner Andresen
In Poemas de Amor 













COMO O RUMOR



Como o rumor do mar dentro de um búzio
O divino sussurra no universo
Algo emerge: primordial projecto

Sophia Mello Breyner Andresen
In Poemas Escolhidos






OS DIAS DE VERÃO



Os dias de verão vastos como um reino 
Cintilantes de areia e maré lisa 
Os quartos apuram seu fresco de penumbra 
Irmão do lírio e da concha é nosso corpo 

Tempo é de repouso e festa 
O instante é completo como um fruto 
Irmão do universo é nosso corpo 

O destino torna-se próximo e legível 
Enquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astros 
Que em sua imóvel mobilidade nos conduzem 

Como se em tudo aflorasse eternidade 

Justa é a forma do nosso corpo 


 SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN 
In Dual, 1972 








CATILINA



Eu sou o solitário e nunca minto.
Rasguei toda a vaidade tira a tira
E caminho sem medo e sem mentira
À luz crepuscular do meu instinto.

De tudo desligado, livre sinto
Cada coisa vibrar como uma lira,
Eu - coisa sem nome em que respira
Toda a inquietação dum deus extinto.

Sou a seta lançada em pleno espaço
E tenho de cumprir o meu impulso,
Sou aquele que venho e logo passo.

E o coração batendo no meu pulso
Despedaçou a forma do meu braço
Pra além do nó de angústia mais convulso.


Sophia de M.B. Andresen
In Poemas escolhidos





POEMA



A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar
São minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada.

Sophia de Mello Breyner Andresen
In Poemas Escolhidos




OS AMIGOS




Voltar ali onde
A verde rebentação da vaga
A espuma o nevoeiro o horizonte a praia
Guardam intacta e impetuosa
Juventude antiga -
Mas como sem os amigos
Sem a partilha o abraço a comunhão
Respirar o cheiro a alga da maresia
E colher a estrela do mar em minha mão

Sophia de M.B.Andresen
In Musa, 1994

NUNCA MAIS



Nunca mais
Caminharás nos caminhos naturais.

Nunca mais te poderás sentir
Invulnerável, real e densa —
Para sempre está perdido
O que mais do que tudo procuraste
A plenitude de cada presença.

E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I

LIBERDADE



O poema é
liberdade

Um poema não se programa
Porém a disciplina
- Sílaba por sílaba -
O acompanha

Sílaba por sílaba
O poema emerge
- Como se os deuses o dessem
O fazemos


Sophia de Mello Breyner Andresen
In Poemas Escolhidos

SINTO OS MORTOS NO FRIO DAS VIOLETAS...



Sinto os mortos no frio das violetas
E nesse grande vago que há na lua.

A terra fatalmente é um fantasma,
Ela que toda a morte em si embala.

Sei que canto a beira de um silêncio,
Sei que bailo em redor da suspensão,
E possuo em redor da impossessão.

Sei que passo em redor dos mortos mudos
E sei que trago em mim a minha morte.

Mas perdi o meu ser em tantos seres,
Tantas vezes morri a minha vida,
Tantas vezes beijei os meus fantasmas,
Tantas vezes não soube dos meus atos,
Que a morte será simples como ir
Do interior da casa para a rua.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in Poemas escolhidos

A FORMA JUSTA



Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo


Sophia de Mello Breyner Andresen
in O Nome das Coisas

MEIO DA VIDA



Porque as manhãs são rápidas e o seu sol quebrado
Porque o meio-dia
Em seu despido fulgor rodeia a terra

A casa compõe uma por uma as suas sombras
A casa prepara a tarde
Frutos e canções se multiplicam
Nua e aguda
A doçura da vida


Sophia de Mello Breyner Andresen
in:Livro Sexto 

COMO UM FRUTO...



Como um fruto que mostra 
Aberto pelo meio 
A frescura do centro 

Assim é a manhã 
Dentro da qual eu entro


Sophia de Mello Breyner Andresen,
in "Livro Sexto"

HÁ CIDADES ACESAS NA DISTÂNCIA



Há cidades acesas na distância,
Magnéticas e fundas como luas,
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltação e ressonância.

Há cidades cujo lume
Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.

E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, 
in POESIA







INICIAL



O mar azul e branco e as luzidias 
Pedras: O arfado espaço 
Onde o que está lavado se relava 
Para o rito do espanto e do começo 
Onde sou a mim mesma devolvida 
Em sal espuma e concha regressada 
À praia inicial da minha vida 


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN 
In Dual

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

A NOITE E A CASA



A noite reúne a casa e o seu silêncio
Desde o alicerce desde o fundamento
Até à flor imóvel
Apenas se houve bater o relógio do tempo

A noite reúne a casa a seu destino

Nada agora se dispensa se divide
Tudo está como o cripreste atento

O vazio caminha em seus espaços vivos.



Sophia de Melo Breyner Andresen










OUVE



Ouve que estranhos pássaros de noite
Tenho defronte da janela:
Pássaros de gritos sobreagudos e selvagens
O peito cor de aurora, o bico roxo.
Falam-se de noite, trazem
Dos abismos da noite lenta e quieta
Palavras estridentes e cruéis.
Cravam no luar as suas garras
E a respiração do terror desce
Das suas asas pesadas.


Sophia de Mello Breyner Andresen




POR DELICADEZA



Bailarina fui
Mas nunca dancei
Em frente das grades
Só três passos dei

Tão breve o começo
Tão cedo negado
Dancei no avesso
Do tempo bailado

Dançarina fui
Mas nunca bailei
Deixei-me ficar
Na prisão do rei

Onde o mar aberto
E o tempo lavado?
Perdi-me tão perto
Do jardim buscado

Bailarina fui
Mas nunca bailei
Minha vida toda
Como cega errei

Minha vida atada
Nunca a desatei
Como Rimbaud disse
Também direi:

"Juventude ociosa
Por tudo iludida
Por delicadeza
Perdi minha vida"


Sophia de Mello Breyner Andresen